quarta-feira, 16 de maio de 2012

ARCADISMO EM POEMAS LÍRICOS DE BOCAGE

MANOEL MARIA DU BOCAGE
O Arcadismo
 é uma escola literária surgida na Europa no século XVIII, razão por que também é denominada como Setecentismo ou neoclassicismo. O nome "Arcadismo" é uma referência à Arcádia, região bucólica do Peloponeso, na Grécia antiga, tida como ideal de inspiração poética.

Características do Arcadismo
O Arcadismo constitui-se em uma forma de literatura mais simples, opondo-se aos exageros e rebuscamentos do Barroco, expresso pela frase "Inutilia truncat" ("cortar o inútil"). Os temas também são simples e comuns aos seres humanos, como o amor, a morte, o casamento, a solidão. As situações mais freqüentes apresentam um pastor abandonado pela amada, triste e queixoso. É a "Aurea mediocritas" ("mediocridade áurea"), que simboliza a valorização das coisas cotidianas, focalizadas pela razão.
Os autores retornam aos modelos clássicos da Antiguidade greco-latina e aos renascentistas, razão pela qual o movimento é também conhecido como neoclássico. Os seus autores acreditavam que a Arte era uma cópia da natureza, refletida através da tradição clássica. Por isso a presença da mitologia pagã, além do recurso a frases latinas.
Inspirados na frase do escritor latino Horácio "Fugere urbem" ("fugir da cidade"), e imbuídos da teoria do "bom selvagem" de Jean-Jacques Rousseau, os autores árcades voltam-se para a natureza em busca de uma vida simples, bucólica, pastoril, do "locus amoenus", do refúgio ameno em oposição aos centros urbanos dominados pelo Antigo Regime, pelo Absolutismo monárquico.
Cumpre salientar que essa busca configurava apenas um estado de espírito, uma posição política e ideológica, uma vez que esses autores viviam nos centros urbanos e, burgueses que eram, ali mantinham os seus interesses econômicos. Por isso justifica falar-se em "fingimento poético" no arcadismo fato que transparece no uso dos pseudônimos pastoris.
Além disso, diante da efemeridade da vida, defendem o "Carpe diem", pelo qual o pastor, ciente da brevidade do tempo, convida a sua pastora a gozar o momento presente.
Quanto à forma, usavam muitas vezes sonetos com versos decassílabos, rima optativa e a tradição da poesia épica.

O Arcadismo em Portugal
O clima de renovação atingiu também Portugal que, no começo do século XVIII, passava pelo período final de sua reestruturação econômica, política e cultural.
Durante o reinado de João V de Portugal (1707-1750) percebe-se, no país, uma certa abertura intelectual e política, como por exemplo a licença concedida à Congregação do Oratório para ministrar ensino, até então privilégio da Companhia de Jesus.
Em 1746, Luís António Verney, inspirado nas idéias dos racionalistas franceses, publica as cartas que compõem o seu "Verdadeiro Método de Estudar", obra em que critica o ensino tradicional e propõe reformas que visam a colocar a cultura portuguesa a par com a do resto da Europa.
Caberá, entretanto, ao marquês de Pombal, ministro de José I de Portugal (1750-1777), concretizar essas aspirações. Agindo com plena autonomia de poderes, o despotismo esclarecido de Pombal operou verdadeira transformação nos rumos da cultura portuguesa:
·         expulsou os jesuítas em 1759, o que enfraqueceu bastante a influência religiosa no campo cultural;
·         incentivou os estudos científicos;
·         reformou o ensino e, apesar de manter um sistema de censura, afrouxou muito a repressão que era exercida pelo Santo Ofício (a Inquisição).
Em Portugal, o Arcadismo iniciou-se oficialmente em 1756, com a fundação da “Arcádia Lusitana”, entidade em que se reuniam intelectuais e artistas para discutirem Arte.
A “Arcádia Lusitana” tinha por lema a frase latina "Inutilia truncat" ("acabe-se com as inutilidades"), que vai caracterizar todo o movimento no país. Visavam com isto erradicar os exageros, o rebuscamento, e a extravagância preconizados pelo Barroco, retornando a uma literatura simples.

Manuel Maria Barbosa du Bocage
Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (Setúbal, 15 de Setembro de 1765 — Lisboa, 21 de Dezembro de 1805) foi um poeta português e, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico que terá forte presença na literatura portuguesa do século XIX.
BOCAGE LIRICO
A poesia lírica de Bocage apresenta duas vertentes principais: uma, luminosa, etérea, em que o poeta se entrega inebriado à evocação da beleza das suas amadas (Marília, Jónia, Armia, Anarda, Anália), expressando lapidarmente a sua vivência amorosa torrencial: "Eu louco, eu cego, eu mísero, eu perdido / De ti só trago cheia, oh Jónia, a mente; / Do mais e de mim ando esquecido."; outra, nocturna, pessimista, depressiva em que manifesta a incomensurável dor que o tolhe, devido à indiferença, à traição, à ingratidão ou à "tirania" de Nise, Armia, Flérida ou Alcina.
Estas assimetrias são um lugar-comum na obra de Bocage, plena de contrários. São ainda o corolário do seu temperamento arrebatado e emotivo. A dialéctica está bem patente nos seus versos: "Travam-se gosto e dor; sossego e lida... / É lei da Natureza, é lei da Sorte / Que seja o mal e o bem matiz da vida!"
Na sua poética prevalece a segunda vertente mencionada, o sofrimento, o "horror", as "trevas", facto que o faz, com frequência, ansiar pela sepultura, "refúgio me promete a amiga Morte", como afirma nomeadamente.
A relação que tem com as mulheres é também melindrosa, precária. O ciúme "infernal" rouba-lhe o sono, acentua-lhe a depressão.
Bocage considera que a desventura que o oprime é fruto de um destino inexorável, irreversível, contra o qual nada pode fazer. A "Fortuna", a "Sorte", o "Fado", no seu entender, marcaram-no indelevelmente para o sofrimento atroz, como se depreende dos seguintes versos: "Chorei debalde minha negra sina", "em sanguíneo carácter foi marcado / pelos Destinos meu primeiro instante".
Outro aspecto relevante a ponderar na avaliação da poesia de Bocage é a dialéctica razão/sentimento. Com efeito, existe um conflito aberto entre a exuberância do amor, também físico, a sua entrega total, e a contenção e a frieza do racional: "Razão, de que me serve o teu socorro? / Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo; / Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro", ou ainda quando escreve "contra os sentidos a razão murmura".
Bocage viveu num período de transição, conturbado, em convulsão. A sua obra espelha essa instabilidade. Por um lado, reflecte as influências da cultura clássica, cultivando os seus géneros, fazendo apelo à mitologia, utilizando vocabulário genuíno; por outro lado, é um pré-romântico pois liberta-se das teias da razão, extravasa com intensidade tudo o que lhe vai na alma, torrencialmente expressa os seus sentimentos, faz a apologia da solidão.





Analisemos alguns dos sonetos de Bocage:
1. Apenas vi do dia a luz brilhante

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá de Túbal no empório celebrado,
Em sanguíneo carácter foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte devorante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e enfim meu fado,
Dos irmãos e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da Pátria, longe da ventura,
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.

Estrutura interna bipartida:
1ª parte, constituída pelas quadras e pelo 1º terceto, na qual o sujeito poético nos dá conta do infortúnio com que o Destino o marcou à nascença, ao ponto de lhe ter roubado a mãe, quando ainda era criança, e de o ter afastado da Pátria e do resto da família (pai e irmãos);
2ª parte, constituída pelo último terceto, na qual o sujeito poético, utilizando uma comparação antitética que estabelece com a «insana multidão», confessa apenas suspirar pela paz da sepultura;
Nota: talvez seja de reparar o facto de o sujeito poético não se ter coibido de utilizar o termo morte (devorante), quando referido à mãe (vv 5/6), o que evidencia o quanto, para si, foi dolorosa, ao passo que, no final, porque é uma aspiração sua, e já pacificada, utiliza um eufemismo.

Aspectos psicológicos:
- caráter sanguíneo (marcado pelos Destinos (vv 3/4))
- carente de afetos (vv 5/8)
- desejoso da morte (v 14)

Elementos neoclássicos:
- a forma (soneto)
- o vocabulário alatinado (empório, devorante, vagando, insana)
- a presença da mitologia (Túbal, Destinos, Marte)

Elementos românticos:
- o caráter autobiográfico
- o individualismo
- o tom confessional
- a crença no fatalismo de que vítima

Alguns recursos estilísticos:
- adjetivação (brilhante, celebrado, sanguíneo, devorante, terna, doce, distante, curva, profundo, insana);
- metonímia (vv 2, 7);
- hipérbato (vv 2/4, 11);
- apóstrofe (v 6);
- anáfora (v 10);
- anástrofe (vv 1, 8);
- hipérbole e perífrase (v 11);
- eufemismo (v 14).

2. Já Bocage não sou!... À cova escura

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!... Tivera algum merecimento
Se um raio de razão seguisse pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria.

Outro Aretino fui... A santidade
Manchei - ... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

Também este poema é o resultado de uma atitude introspectiva do sujeito poético, o que determina, uma vez mais, a respectiva estrutura interna:
- nas duas quadras, o sujeito poético confessa uma vida de ultraje a Deus no passado;
- nos dois tercetos, assiste-se à confissão do arrependimento, o que impele o sujeito poético a dirigir-se à mocidade, que corria atrás da sua poesia, para que rasgue seus versos e acredite na eternidade;
Note a diferença que resulta da leitura do verso 6, considerando o ritmo heróico (marca as palavras fez e intento), ou o sáfico (marca as palavras verso, louco e intento), ambos possíveis.

Elementos neoclássicos:
- a forma (soneto)
- a presença da mitologia (Musa)
- a presença de vocabulário alatinado (estro, fantástico)
- a alusão à razão

Elementos românticos:
- o tom confessional do poema
- o tema do arrependimento
- a alusão à morte
- o tom declamatório
- a pontuação expressiva associada à função emotiva

Alguns recursos estilísticos:
- adjetivação (escura, desfeito, leve, dura, vã, louco, pura, fria, alto, fantástico, ímpia);
- anástrofe (v 1/2, 6, 11/12);
- metonímia (v 3);
- antítese (v 4);
- apóstrofe (v 7, 13);
- metáfora (v 11).

3. Olha, Marília, as flautas dos pastores

Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali beijando-se os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores.

Naquele arbusto o rouxinol suspira,
Ora nas folhas a abelhinha pára,
Ora nos ares sussurrando gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah! Tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.

Descrição de um locus amoenus ao longo de quase todo o soneto (até ao final do 1º terceto), muito ao gosto clássico. No entanto, o sujeito poético esclarece que toda aquela paisagem paradisíaca só é possível na presença da amada (v 13/14).
Esta atitude de apresentar a natureza como reflexo do estado da alma do poeta, em função da presença ou ausência da amada, é uma característica romântica.

Elementos neoclássicos:
- a forma (soneto)
- o vocabulário alatinado ( cadente, Zéfiros, ósculos)
- a presença da mitologia (Amores (Cupidos, filhos de Marte e de Vênus))

Elementos românticos:
- a natureza como reflexo do estado da alma do poeta (em função da presença ou ausência da amada);
- a pontuação subjetiva (abundância de exclamações);
- a presença do rouxinol e da noite;
- o amor sensual

Alguns recursos estilísticos:
- apóstrofe (v 1, 3, 5);
- adjetivação (cadentes, ardentes, alegre, clara);
- aliteração (sobretudo de sons fricativos, sibilantes e chiantes, e de vibrantes);
- personificação (v 3/4, 7/8, 9/11);
- anáfora (v 1, 3, 10/11);
- anástrofe (v 7/9...);
- hipérbole (v 13/14);
- metáfora (v 4, 9, 11);
- sinestesia (presença de várias sensações: auditivas, visuais, táteis, gustativas, olfativas).

4. Oh retrato da Morte, oh Noite amiga

Oh retrato da Morte, oh Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga.

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.

Estrutura interna - dois momentos distintos:
- as duas quadras, em que o sujeito poético se dirige à «Noite amiga», «retrato da Morte»; neste primeiro momento, assistimos à caracterização da noite (retrato da Morte, amiga, testemunha, confidente) e ao pedido para que, uma vez mais, ouça os seus desabafos, os seus lamentos;
- os dois tercetos, em que se dirige aos "mochos piadores", "cortesãos da escuridade" e "inimigos da claridade"; neste segundo momento, o poeta suplica aos mochos que, com a sua "medonha sociedade", o ajudem a fartar o seu coração de horrores;
- O estado de alma do poeta é o resultado da falta de afetos, a conseqüência da "cruel" que dorme (ao contrário dele que passa uma noite de insônia) e que o obriga a delirar (v 8).

Elementos neoclássicos:
- a forma (soneto)
- a presença da mitologia (Amor (Cupido, filho de Marte e de Vênus))
- o vocábulo escuridade

Elementos românticos:
- o tom confessional do poema uma certa linguagem teatral (tom declamatório com presença de algumas interjeições e de exclamações);
- o uso de vocabulário tétrico (Morte, escuridão, pranto, desgostos, cruel, escuridade, Fantasmas, piadores, medonha, horrores) que nos aproxima dum ambiente próprio dum locus horrendus.

Alguns recursos estilísticos:
- personificação da Noite e dos mochos (v 9);
- apóstrofe (v 1/4, 6/7, 9/12);
- elipse (v 3);
- anástrofe (v 4/5, 8, 12);
- adjetivação (amiga, calada, antiga, pio, vagos, piadores, inimigos, medonha);
- reiteração (v 7, 13/14 (através da anáfora));
- anáfora (v 7, 13/14);
- sinestesia (v 3, 5, 7, 9, 11/12);
- metáfora (v 1, 4, 6, 9, 10, 13);
- comparação (v 11);
Note a existência de dois versos sáficos (com acento rítmico nas 4ª, 8ª e 10ª sílabas métricas): 8, 14.

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